18 dezembro 2023

Da arte de transformar edredons e devolver olhares

 A semana 11 e 12 por Fernando Marques

Como já aconteceu antes, quando numa semana a gente faz apenas um encontro – normalmente fazemos dois –, juntamos duas semanas num post só. É o caso deste texto. Dito isso, vamos ao assunto.

Na cena de Antígona – o correto seria dizer: na cena a partir de Antígona –, há algumas coisas que me interessam particularmente. Gosto da cena toda, acho que conseguimos um ponto bom. Gosto do quão diferente do Hamlet – o correto seria dizer: da cena a partir de Hamlet – a cena de agora é; do fato de, no mesmo processo, lidando com o mesmo tema (embora com aspectos diferentes dele), e a partir de duas tragédias (embora de diferentes épocas), os caminhos para cada cena terem se diversificado tanto.

Antigone donnant la sépulture à Polynice (1825),
de Sébastien Norblin - mas aqui, com nosso
Edredom-Polinicies e nossa guarda Gina.
Um ponto que me interessa é o da manipulação. O nosso Polinices morto é um edredom amarrado, como já disse a Patricia. E o nosso edredom amarrado é um Polinices morto. Eu acho lindo esse pacto que se estabelece e que permite que a gente crie esse tipo de coisa: que o edredom seja o príncipe grego e vice-versa. E, uma vez que o pacto esteja estabelecido e aceito por todo mundo, o que faz com que esse tipo de coisa seja possível é, na maioria das vezes, o trabalho de quem atua. No nosso caso específico, o trabalho da palhaça. A maneira como ela manipula o objeto é que faz com que ele possa ser, aos olhos de quem assiste, o que ele se torna: um defunto inerte, um companheiro no apuro e no aperto, um parceiro de dança, um edredom mal-ajeitado, uma bola de futebol e o que mais for.

É muito bom ver o objeto se transformando de maneira quase incoerente: mas não era um corpo?, mas não era um edredom?, mas não era uma bola?, mas não era um amigo?, mas não era um objeto inerte? Ao que se poderia responder “sim, era” ou “quem te disse?”

Ainda sobre a manipulação, há um momento em que o Polinices-Edredom (ou Edredom-Polinices) é manipulado como se manipula um boneco – ou outra forma animada – em cena. É um momento breve, sem grandes rigores (mas com cuidado) e eu aposto nele como um ponto que agradará ao público. Mas isso é esperar pra ver.

Outro ponto interessante é o momento de espera da palhaça, um momento em que, aparentemente – e só aparentemente –, nada acontece. Não vou me deter sobre o que acontece, porque a Patricia já falou sobre isso
aqui
. Mas é legal pensar que, em cena, fazer nada é algo que não existe, porque estar em cena já é fazer alguma coisa. Ok, você dirá que fora de cena isso também é verdade, não há fazer nada, porque se respira, se espera, se contempla, se existe. E você terá razão. A questão é que, em cena, há uma situação de artificialidade que desloca o que quer que (não) se faça ali do fazer ordinário, cotidiano.

A colocação – já batida, mas nem por isso menos verdadeira – de que o teatro consiste em alguém que atua para alguém que assiste dá, em certa medida, conta disso, dessa artificialidade: em cena, eu não bebo água para matar a minha sede; eu bebo água para que você me veja bebendo água. Eu não espero para que algo aconteça; eu espero para que você me veja esperando. Em suma: na cena, há uma pessoa que age não para conseguir o fim daquela ação, mas para ser vista agindo. E o que acontece quando a ação dessa pessoa é olhar de volta para quem a vê?

Eu acho que é isso o que (também) acontece na cena da espera: a palhaça, em cena, parece pausar a ação que acompanhamos para nos olhar de volta. E há aí – percebe? – uma subversão: não é você que deveria me olhar, eu é que olho pra você. Há quem diga que há, no jogo teatral entre atuantes e público um jogo de espelhos, na medida em que o teatro é capaz de, mostrando-se, mostrar-nos a nós mesmos. Nesse tipo de cena, em que a ação parece – lembrando: só parece – suspensa e quem está ali nos olha de volta, esse jogo de espelhamento é muito potencializado, desde que a cena de fato aconteça, que a relação se sustente, que a corda entre cena e plateia se mantenha estendida pra que a relação que anda sobre ela não despenque. Se isso acontece, algo se realiza: um leve desconforto, algo de comicidade, alguma cumplicidade, o imprevisível. Por outro lado, pode ser que a corda afrouxe ou arrebente e o pacto se desfaça – o horror.

É uma situação de risco. A Patricia disse que isso de jogar com a aparente inação é coisa de palhaço velho – no sentido de quem tem grande domínio do que faz. Mas a cena é lugar de risco. Aliás, eu conversava com Patricia sobre isso esses dias: um monte de gente de teatro fala, com orgulho, dos riscos de estar em cena, dos riscos de a cena não funcionar etc. Mas quer morrer quando o negócio dá errado. Ou seja: quer correr riscos, ma non troppo.

Seja como for, são duas coisas aqui – a aparente inação olhando pra plateia e a manipulação que vai transformando coisas aos olhos de todo mundo – que exacerbam a teatralidade, que a levam às últimas consequências e aos seus princípios básicos. A gente se junta, inventa umas coisas, lida com o que há como se fosse o que não há, a gente se olha fazendo isso e depois segue a vida. Parece uma bobagem gigantesca, algo inútil – do ponto de vista da produtividade, do servir a algo ou a alguém, do serviço. Mas deve haver aí algo que nos mantém repetindo isso há milênios. E de mais a mais, eu adoro inutilidades.

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(Ainda não) é o fim!