A semana 11 e 12 por Fernando Marques
Como já aconteceu antes, quando numa semana a gente faz apenas
um encontro – normalmente fazemos dois –, juntamos duas semanas num post só. É
o caso deste texto. Dito isso, vamos ao assunto.
Na cena de Antígona – o correto seria dizer: na cena
a partir de Antígona –, há algumas coisas que me interessam
particularmente. Gosto da cena toda, acho que conseguimos um ponto bom. Gosto
do quão diferente do Hamlet – o correto seria dizer: da cena a partir de
Hamlet – a cena de agora é; do fato de, no mesmo processo, lidando com o
mesmo tema (embora com aspectos diferentes dele), e a partir de duas tragédias
(embora de diferentes épocas), os caminhos para cada cena terem se
diversificado tanto.
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Antigone donnant la sépulture à Polynice (1825), de Sébastien Norblin - mas aqui, com nosso Edredom-Polinicies e nossa guarda Gina. |
É muito bom ver o objeto se transformando de maneira quase
incoerente: mas não era um corpo?, mas não era um edredom?, mas não era uma
bola?, mas não era um amigo?, mas não era um objeto inerte? Ao que se poderia
responder “sim, era” ou “quem te disse?”
Ainda sobre a manipulação, há um momento em que o Polinices-Edredom
(ou Edredom-Polinices) é manipulado como se manipula um boneco – ou outra forma
animada – em cena. É um momento breve, sem grandes rigores (mas com cuidado) e
eu aposto nele como um ponto que agradará ao público. Mas isso é esperar pra
ver.
Outro ponto interessante é o momento de espera da palhaça,
um momento em que, aparentemente – e só aparentemente –, nada acontece. Não vou
me deter sobre o que acontece, porque a Patricia já falou sobre isso
aqui. Mas
é legal pensar que, em cena, fazer nada é algo que não existe, porque estar em
cena já é fazer alguma coisa. Ok, você dirá que fora de cena isso também é
verdade, não há fazer nada, porque se respira, se espera, se contempla, se
existe. E você terá razão. A questão é que, em cena, há uma situação de
artificialidade que desloca o que quer que (não) se faça ali do fazer
ordinário, cotidiano.
A colocação – já batida, mas nem por isso menos verdadeira –
de que o teatro consiste em alguém que atua para alguém que assiste dá, em
certa medida, conta disso, dessa artificialidade: em cena, eu não bebo água
para matar a minha sede; eu bebo água para que você me veja bebendo água. Eu
não espero para que algo aconteça; eu espero para que você me veja esperando. Em
suma: na cena, há uma pessoa que age não para conseguir o fim daquela ação, mas
para ser vista agindo. E o que acontece quando a ação dessa pessoa é olhar de
volta para quem a vê?
Eu acho que é isso o que (também) acontece na cena da
espera: a palhaça, em cena, parece pausar a ação que acompanhamos para nos
olhar de volta. E há aí – percebe? – uma subversão: não é você que deveria me
olhar, eu é que olho pra você. Há quem diga que há, no jogo teatral entre
atuantes e público um jogo de espelhos, na medida em que o teatro é capaz de,
mostrando-se, mostrar-nos a nós mesmos. Nesse tipo de cena, em que a ação
parece – lembrando: só parece – suspensa e quem está ali nos olha de volta, esse
jogo de espelhamento é muito potencializado, desde que a cena de fato aconteça,
que a relação se sustente, que a corda entre cena e plateia se mantenha
estendida pra que a relação que anda sobre ela não despenque. Se isso acontece,
algo se realiza: um leve desconforto, algo de comicidade, alguma cumplicidade,
o imprevisível. Por outro lado, pode ser que a corda afrouxe ou arrebente e o
pacto se desfaça – o horror.
É uma situação de risco. A Patricia disse que isso de jogar
com a aparente inação é coisa de palhaço velho – no sentido de quem tem grande
domínio do que faz. Mas a cena é lugar de risco. Aliás, eu conversava com
Patricia sobre isso esses dias: um monte de gente de teatro fala, com orgulho,
dos riscos de estar em cena, dos riscos de a cena não funcionar etc. Mas quer
morrer quando o negócio dá errado. Ou seja: quer correr riscos, ma non troppo.
Seja como for, são duas coisas aqui – a aparente inação olhando
pra plateia e a manipulação que vai transformando coisas aos olhos de todo
mundo – que exacerbam a teatralidade, que a levam às últimas consequências e
aos seus princípios básicos. A gente se junta, inventa umas coisas, lida com o
que há como se fosse o que não há, a gente se olha fazendo isso e depois segue
a vida. Parece uma bobagem gigantesca, algo inútil – do ponto de vista da
produtividade, do servir a algo ou a alguém, do serviço. Mas deve haver aí algo
que nos mantém repetindo isso há milênios. E de mais a mais, eu adoro
inutilidades.
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