17 outubro 2023

Cadê a palhaça? – primeiros experimentos de Hamlet


A semana 1 por Patricia Galleto
 


Foto: Fernando Marques


Primeira vez na sala de ensaio para iniciar este projeto com a palhaça e com o Dinho. Dinho, sempre organizado, levou trechos de Hamlet para lermos e experimentarmos algo a partir do texto. Tínhamos claro, desde a escrita do projeto, que essa experimentação seria livre, que nossa proposta não seria a de reproduzir a peça original de Shakespeare, mas sim a de ver o que dali poderia surgir.

Os trechos selecionados pelo Dinho tinham a ver com o que ele imaginava poder ser disparador para o trabalho com a palhaça; então, além de passagens clássicas da obra, como o ser-ou-não-ser ou a aparição do fantasma (pai de Hamlet assassinado pelo tio para que este ficasse com o trono e com a rainha), havia diálogos tragicômicos, havia o trabalho dos coveiros, entre outros recortes potencialmente úteis para nossa proposta.

Quando fomos para a prática, Dinho apontou como sugestão uma situação/cenário: a palhaça como funcionária do Juízo Final precisando julgar os mortos, representados por caveiras. Na obra original, há uma cena em que dois coveiros conversam enquanto trabalham na lida com crânios nas covas. É uma ação corriqueira para os trabalhadores, o que impressiona Hamlet, que, por sua vez, passa a imaginar quem teriam sido os donos daquelas caveiras em vida. Assim fantasia histórias a partir de cada crânio, e julga o descaso de quem os manipula, como se lhe faltasse respeito.

A partir disso, tínhamos a proposta de criar, então, uma situação de julgamento dessas pessoas que morreram, com toda a leviandade de uma palhaça que, embora não fosse coveira, também era uma trabalhadora desse metiê. Fui, portanto, experimentar absolutamente no improviso. Foi horrível, desesperador. Dinho riu da minha cara quando eu disse isso e, com muita lucidez, falou que eu estava ansiosa, e que já havia material ali para ser trabalhado.

Para mim tinha sido horrível não porque eu esperasse saber o que fazer exatamente, não era isso. Meu completo desconforto foi por não me sentir na Gina, a palhaça em questão, desempenhando tais ações e experimentos. Uma espécie de limbo entre Patricia sem estado de palhaça e uma atriz meio perdida, lutando para se reconhecer naquilo que estava fazendo. Com a cabeça – e o corpo – imersos nesse conflito interno, obviamente não havia presença. Essa foi a minha sensação, a de um fracasso profundo naquilo que julgo ser o mais importante para uma cena de palhaça. A palhaça não existia. Talvez pelo tempo sem usar o nariz, talvez pelo caminho de criação totalmente novo, provavelmente pelas duas coisas.

Calmamente (e até animadamente), contrastando com meu estado dramático de desapontamento, Dinho propôs um roteiro de ações. Esse roteiro era bastante aberto, algo como: entra cansada; arruma a mesa de trabalho; atende ao telefone; começa a julgar os mortos-caveiras. Disse que a palhaça se fortaleceria naturalmente ao logo do processo da pesquisa.

Saí do primeiro encontro angustiada. A partir dessa orientação, já em casa, eu tomei um tempo para pensar enquanto me movia discretamente (aquele mover pequenininho, que ainda é mais imaginado, mas também estimulado e sentido pelo/no corpo). Enquanto eu fazia isso, com calma e sozinha, os jogos com a situação e com os objetos que eu fui introduzindo conforme a necessidade foram surgindo, e as ações já tinham uma outra sensação, uma sensação mais de Gina. Uma “entrada de cansaço” naturalmente passou a ser a de uma pessoa que se arrasta, literalmente, para o trabalho. Arrumar os objetos na mesa abriu possibilidades de brincar com eles criativamente, como um porta-lápis ser adornado por um galho seco, os clips serem unidos como um colar, o cafezinho ser batizado com cerveja, um cigarro não fumado porque a intenção é parar de fumar. Também abriu espaço para ritmos (ao bater o carimbo imaginário na mesa, por exemplo), considerando ritmo de cena também, a partir das variações de estado que é típica da palhaça e do palhaço, sem intermediários psicológicos. Aquele conhecido “liga e desliga”, entrar e sair da figura ou ‘personagem’ que a palhaça brinca de ser – afinal, mais do que ser, ela internamente brinca de ser uma funcionária do Juízo Final.

Apresentei para o Dinho esse roteiro executado e transformado, e ele trouxe mais contribuições para que a dramaturgia desta cena acontecesse melhor, com mais clareza de leitura e de forma mais interessante, mesclando sua posição de dramaturgo com a de diretor – o que geralmente costuma acontecer em seus trabalhos e que nesta pesquisa me parece ser de fato, mais do que em outras montagens, indissociável.

Dessa forma, a entrada cansada passou a ser óbvia demais – trocamos por uma entrada muito animada para o trabalho, com uma postura de quem acabou de ser promovida a gerente. O telefone passou a ser atendido logo no começo, com a frase “Bom dia, juízo final!” para situar o espectador. E outros jogos foram sendo desenhados. A cada repetição, algo novo. E tenho a impressão de que sempre haverá algo novo quando se trata de uma palhaça. Fico feliz que ela esteja voltando à vida, e à cena.

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