A semana 1 por Patricia Galleto
Foto: Fernando Marques |
Os trechos selecionados pelo
Dinho tinham a ver com o que ele imaginava poder ser disparador para o trabalho
com a palhaça; então, além de passagens clássicas da obra, como o ser-ou-não-ser
ou a aparição do fantasma (pai de Hamlet assassinado pelo tio para que este
ficasse com o trono e com a rainha), havia diálogos tragicômicos, havia o
trabalho dos coveiros, entre outros recortes potencialmente úteis para nossa
proposta.
Quando fomos para a prática,
Dinho apontou como sugestão uma situação/cenário: a palhaça como funcionária do
Juízo Final precisando julgar os mortos, representados por caveiras. Na obra
original, há uma cena em que dois coveiros conversam enquanto trabalham na lida
com crânios nas covas. É uma ação corriqueira para os trabalhadores, o que
impressiona Hamlet, que, por sua vez, passa a imaginar quem teriam sido os
donos daquelas caveiras em vida. Assim fantasia histórias a partir de cada
crânio, e julga o descaso de quem os manipula, como se lhe faltasse respeito.
A partir disso, tínhamos a
proposta de criar, então, uma situação de julgamento dessas pessoas que
morreram, com toda a leviandade de uma palhaça que, embora não fosse coveira,
também era uma trabalhadora desse metiê. Fui, portanto, experimentar
absolutamente no improviso. Foi horrível, desesperador. Dinho riu da minha cara
quando eu disse isso e, com muita lucidez, falou que eu estava ansiosa, e que
já havia material ali para ser trabalhado.
Para mim tinha sido horrível não porque
eu esperasse saber o que fazer exatamente, não era isso. Meu completo
desconforto foi por não me sentir na Gina, a palhaça em questão, desempenhando
tais ações e experimentos. Uma espécie de limbo entre Patricia sem estado de
palhaça e uma atriz meio perdida, lutando para se reconhecer naquilo que estava
fazendo. Com a cabeça – e o corpo – imersos nesse conflito interno, obviamente
não havia presença. Essa foi a minha sensação, a de um fracasso profundo naquilo
que julgo ser o mais importante para uma cena de palhaça. A palhaça não
existia. Talvez pelo tempo sem usar o nariz, talvez pelo caminho de criação
totalmente novo, provavelmente pelas duas coisas.
Calmamente (e até animadamente),
contrastando com meu estado dramático de desapontamento, Dinho propôs um
roteiro de ações. Esse roteiro era bastante aberto, algo como: entra cansada;
arruma a mesa de trabalho; atende ao telefone; começa a julgar os
mortos-caveiras. Disse que a palhaça se fortaleceria naturalmente ao logo do
processo da pesquisa.
Saí do primeiro encontro
angustiada. A partir dessa orientação, já em casa, eu tomei um tempo para
pensar enquanto me movia discretamente (aquele mover pequenininho, que ainda é
mais imaginado, mas também estimulado e sentido pelo/no corpo). Enquanto eu
fazia isso, com calma e sozinha, os jogos com a situação e com os objetos que
eu fui introduzindo conforme a necessidade foram surgindo, e as ações já tinham
uma outra sensação, uma sensação mais de Gina. Uma “entrada de cansaço”
naturalmente passou a ser a de uma pessoa que se arrasta, literalmente, para o
trabalho. Arrumar os objetos na mesa abriu possibilidades de brincar com eles
criativamente, como um porta-lápis ser adornado por um galho seco, os clips
serem unidos como um colar, o cafezinho ser batizado com cerveja, um cigarro
não fumado porque a intenção é parar de fumar. Também abriu espaço para ritmos
(ao bater o carimbo imaginário na mesa, por exemplo), considerando ritmo de
cena também, a partir das variações de estado que é típica da palhaça e do
palhaço, sem intermediários psicológicos. Aquele conhecido “liga e desliga”, entrar
e sair da figura ou ‘personagem’ que a palhaça brinca de ser – afinal, mais do
que ser, ela internamente brinca de ser uma funcionária do Juízo
Final.
Apresentei para o Dinho esse
roteiro executado e transformado, e ele trouxe mais contribuições para que a
dramaturgia desta cena acontecesse melhor, com mais clareza de leitura e de
forma mais interessante, mesclando sua posição de dramaturgo com a de diretor –
o que geralmente costuma acontecer em seus trabalhos e que nesta pesquisa me
parece ser de fato, mais do que em outras montagens, indissociável.
Dessa forma, a entrada cansada
passou a ser óbvia demais – trocamos por uma entrada muito animada para o
trabalho, com uma postura de quem acabou de ser promovida a gerente. O telefone
passou a ser atendido logo no começo, com a frase “Bom dia, juízo final!” para
situar o espectador. E outros jogos foram sendo desenhados. A cada repetição,
algo novo. E tenho a impressão de que sempre haverá algo novo quando se trata
de uma palhaça. Fico feliz que ela esteja voltando à vida, e à cena.
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