25 março 2024

Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência


 A semana 20 por Fernando Marques

A Gina está ótima na cena com os remédios – ótima em seu desempenho, eu quero dizer; já de saúde, não sabemos. Toma um remédio atrás do outro justamente para combater males trazidos por... remédios! Obviamente, trata-se apenas de um número de palhaçaria e não tem nada a ver com a sociedade que medicaliza a vida inteira. Afinal, a palhaça é necessariamente um ser puro, que faz um humor ingênuo, capaz de agradar aos pequenos e despertar nossas (eca!) crianças interiores, certo?

Errado. Em algum outro post deste blog (não me lembro qual e fiquei com preguiça de procurar, mas acho que foi sobre o Hamlet) eu já falei de como os bufões, ancestrais dos palhaços atuais, eram os únicos autorizados a dizer verdades incômodas mesmo aos mais poderosos. Contemporaneamente (e todo mundo com quem já conversei sobre o assunto já me ouviu falar disto), assisti uma vez – o 11 de setembro ainda estava bem próximo – a um palhaço norte-americano que fazia uns números com fogo usar suas tochas para mimetizar os aviões que derrubaram as torres gêmeas, fazendo uma crítica genial ao imperialismo e a seu país de origem.

Talvez, inclusive, essa ideia da palhaça como poço de ingenuidade e pureza seja uma forma de deslegitimar a crítica que ela pode fazer à sociedade, de minar a sua capacidade de evidenciar o nosso próprio ridículo, as fraquezas que normalmente dissimulamos, as falhas e vazios com que evitamos lidar. E isso não se dá só com a palhaçaria. Já tive o desprazer de escutar de colegas de profissão, em tempos de ascensão da extrema direita fascista no Brasil e no mundo, que a arte é algo sublime e que está acima desse tipo de discussão. (É em momentos como esse que eu gostaria de acreditar no inferno).

Pois Gina, tendo falado da medicalização da vida, fala agora de solidão na hora da morte. Patricia já evidenciou, no post anterior, que isso tem a ver com a situação da mulher, que geralmente é encarregada do cuidado de todos que estão à sua volta e muito frequentemente não tem quem cuide de si. Gina prepara o próprio velório – coroa, velas, caixão de cedro forrado com seda, salgadinhos e assentos para os convidados. Mas quantos convidados? Quantos salgadinhos e quantas cadeiras? Morre-se só? Na hora da morte, haverá alguém? (Sem papos metafísicos).

Sim, a cena ganhou um momento melancólico e há, eu acho, alguma beleza. Concordamos, eu e Patricia, que agora precisamos sair daí, que a cena, agora, precisa subir de novo. Não temos, no entanto, nenhuma ideia de como fazer isso. Seja como for, tenho gostado do que temos – inclusive da tristeza e da solidão.

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(Ainda não) é o fim!