18 outubro 2023

Morto / Viva


 A semana 2 por Fernando Marques

Eu escrevi um parágrafo enorme e inútil sobre começos de processos. Apaguei e vou começar retomando algo que a Patricia disse no post anterior: que levei trechos do Hamlet (se você não sabe o porquê dessa peça, dá uma olhadinha aqui) para a sala de ensaio e que, entre os trechos, acabamos trabalhando com a cena dos coveiros. Eu acho que pode ser interessante falar um pouco sobre a escolha dessa cena – a primeira do último ato.

Antes de seguir, no entanto, queria lembrar que, de maneira geral, a cena do monólogo – solilóquio, se formos mais técnicos e ortodoxos – do Hamlet (“ser ou não ser”, lembram?) ficou associada à imagem do príncipe segurando um crânio, muitas vezes à beira de um precipício. Acontece que, na peça, o monólogo acontece num salão do castelo e o rapaz não tem nada nas mãos. E a cena em que ele efetivamente segura um crânio é a tal cena dos coveiros.

Voltemos, então, a ela e aos motivos de ela ter sido eleita para o trabalho. Num cemitério junto à igreja, entre ossadas, trabalham os coveiros, preparando um enterro. Talvez não pareça o cenário mais propício, mas é aí que está o momento cômico da peça, protagonizado, num primeiro momento, pelos dois coveiros que são... palhaços. Inclusive, nas edições mais antigas, a rubrica inicial da cena é “Entram dois palhaços” (no Primeiro Folio, de 1623: “Enter two clownes”).

Shakespeare usa desse expediente – a introdução de palhaços que não aparecem em outro momento da peça, quebrando o que os aristotélicos chamam de unidade de ação – em algumas de suas tragédias. E pode ser interessante aqui pensar um pouco nas características desses palhaços e suas funções: são, normalmente, camponeses ou plebeus e falam o que outros personagens não falariam. Em Hamlet, ao prepararem o enterro da Ofélia, por exemplo, questionam o fato de ela ser enterrada no cemitério, já que se acredita que ela se matou – o que contraria a religião dos personagens. Segundo eles, isso só acontecerá porque ela era ligada à corte, jamais se daria com um deles. A displicência com que um deles lida com os crânios pelo cemitério – e, por extensão, com a morte – também é, de alguma forma, emblemática: a solenidade e a circunspecção que a situação inspiraria a outros (como o próprio Hamlet) são francamente subvertidas na atitude do palhaço coveiro.

Então, é claro que isso nos interessa. Mas não é só. Um dos crânios que está por ali é o de Yorick, que havia sido o bobo da corte do pai assassinado de Hamlet (que também se chamava, caso você não saiba, Hamlet). É o crânio de Yorick, no cemitério, que o moço segura – o crânio do bobo da corte, de um palhaço. Há aí um monte de coisas a serem exploradas e, obviamente, eu não vou transformar esse post numa tese. Antes, vou citar a tese do André Guedes Trindade (disponível aqui) que diz, citando o historiador francês Minois, que o riso provocado pelo bobo é importante por trazer o que costuma faltar aos círculos do rei: a verdade, aquela verdade que nenhuma outra pessoa sensata, diante de um soberano, ousaria revelar.

Obviamente, tudo aí nos interessa, parece já dito o porquê da escolha desse trecho. E, depois disso, uma conjecturazinha besta:

O rei Hamlet, pai do príncipe Hamlet, está morto – assassinado pelo próprio irmão que se casou com a rainha, viúva do rei defunto e mãe do príncipe. Estivesse vivo o bobo, o falecido rei teria sido prevenido da traição pelas verdades que só o palhaço diz? A pergunta é mais interessante que a resposta. Mas bom mesmo será o encontro da vivíssima Gina com seu colega morto, Yorick – que, apesar de finado, segue aí em cena desde o século XVII e não tem dado sinais de que vai se aposentar.

Nota mental: quem sabe podemos brincar com a imagem do bobo/palhaço que segue em cena, apesar de morto desde o século XVII, sem poder se aposentar até hoje, relacionando isso com a recente reforma da previdência, que quer nos transformar todos em Yoricks, trabalhando mesmo quando só nos resta o esqueleto. Lembrar: se a língua inglesa nos deu Shakespeare de um lado, de outro, também nos deu a Margaret Thatcher (que já é, também ela, uma caveira).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

(Ainda não) é o fim!