18 outubro 2023

Voz, embolação e morte verdadeira

A semana 3 por Patricia Galleto

Foto: Fernando Marques

E Gina danou a falar. A entrada da fala para além dos habituais monossílabos, grunhidos e gemidos de Gina foi algo desafiador e libertador ao mesmo tempo. Há outras ginas possíveis, e ela pode falar bastante também! Falar acabou sendo necessário para dar conta de comunicar as dez mortes bizarras que Dinho tinha levado, ao mesmo tempo que me fez olhar de novo para a palhaça e perceber que não há nada engessado ali. O exercício, para mim, mais do que importante para a construção da cena, foi fundamental para redescobrir Gina e suas cores possíveis.

Da verborragia fomos à necessidade de reduzir um pouco o texto e ao desafio de contar histórias tão boas com menos palavras; e ainda deste à investigação de como fazer isso jogando ora com a caveira, ora com o público. No meio de todos esses desafios, eu ainda me sentia sem corpo, como se ele tivesse morrido ao ter entrado a voz, e retomar as duas coisas juntas será fundamental.

Nesta etapa, uma saída foi estipular que meu trabalho principal como intérprete-criadora, agora, seria o de desenvolver uma conversa com cada caveira – que passou a ocupar um lugar de destaque na cena quando decidimos colocá-las sobre o banco e este sobre a mesa. Eu deveria, antes, entender a história da pessoa e de como ela morreu, até mais do que decorar o texto. E jogar com isso livremente como se ela estivesse me dando as informações necessárias para eu preencher uma ficha. Entre ouvi-la e anotar, eu comentaria algo com o público, estabelecendo a triangulação indispensável aos palhaços.

As dificuldades foram muitas, e ainda é preciso que eu esteja muito familiarizada com o texto para que essa dinâmica funcione. Fiquei perdida diversas vezes ao interagir com a caveira de forma que eu também conseguisse narrar à plateia o que havia se passado com o morto, sem que isso parecesse uma mera repetição de ouvir a caveira e recontar ao público. Ainda foi bagunçado, sem corpo, sem nuances. Dinho acredita que ainda seja muito texto e muito tempo em cada entrevista. Além disso, temos notado uma baixa energia nas minhas entradas, acompanhada frequentemente da falta de presença. A coisa só parece engatar da metade para o final, o que não nos serve como ideal.

O tempo todo este processo até aqui me faz olhar para dentro (o que não poderia ser diferente em se tratando de ser palhaça e criar como tal – o que sua palhaça diria? Como ela reagiria?). Digo em um sentido prático mesmo, quando a gente tende a se embolar no meio do caminho com tanta informação. Um dos encaminhamentos desta semana foi o de trabalhar mais objetivamente com meu aquecimento antes do ensaio, para que ele seja suficiente e eficiente para ativar de forma mais rápida meu estado de palhaça. Tenho tido uma séria dificuldade nisso, e uma falta de energia muito grande. Provavelmente por coisas da vida.

É de fato uma necessidade estar viva em cena para que a coisa aconteça – pra falar de morte é preciso estar muitíssimo viva, vejam só! Um amigo meu faleceu nesta semana, e ele, que sempre me incentivou a investir na Gina, adoraria o tema; e provavelmente estaria na primeira fileira assistindo, se pudesse. Ele adorava a Gina. É inevitável dizer que a morte dele me fez perder, momentaneamente, a graça de falar de morte. Aliás, eu sou péssima com o tema, incluindo imaginar perder as pessoas que amo, saber que a pessoa amada de alguém morreu, saber da morte de quem eu nem conheci pessoalmente e sobre a qual me contaram. Um abalo absurdo.

Já Dinho me responde, com seu profundo entendimento de vida, que, sim, as perdas existem e é bom que aprendamos a falar delas. Eu digo que não sei, não. Mas aqui estamos fazendo alguma coisa a partir desse tema, do qual estranhamente eu sempre quis tratar. E, neste momento, pego-me pensando: como falar disso? Isso pode ser desrespeitoso com quem perdeu alguém muito importante na vida? É possível rir e sentir dor ao mesmo tempo? O riso é da gente mesma? São minhas reflexões mais íntimas vindas com o episódio da morte do meu amigo, e que não deixam de ser parte do processo. Mas a direção é certa: continuar a fazer, o resto a gente vai descobrindo no caminho. Façamos. Espero que você goste, Julian, de onde estiver. 

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(Ainda não) é o fim!