30 outubro 2023

Caveiras

 
A semana 4 por Fernando Marques

É bem comum em certas cenas de palhaço: muita volta para se chegar a um objetivo que é, muitas vezes, o menos importante ou, então, a parte mais curtinha da cena. O que acaba contando muito é o trajeto até lá. Então, a cena toda se monta para o encontro entre a Gina e o Yorick – ao qual ainda não chegamos e que talvez seja uma partezinha pequena. Ainda não sabemos e é melhor a gente lidar com o que já conhece.

Na cena do cemitério de Hamlet, o personagem-título, vendo as caveiras que surgem (antes de Yorick) no trabalho dos coveiros, faz alguns julgamentos – conjecturando sobre quem poderiam ter sido aqueles ossos em vida, emite alguns juízos. Não vou reproduzir aqui pra não ficar longo, mas você pode, se quiser, dar uma olhada, é a primeira cena do último ato.

Daí veio a ideia do juízo final – se o Hamlet faz lucubrações ao ver as caveiras que foram vivas um dia, a Gina está envolvida num juízo final bem estruturado, institucionalizado e até – por que não? – burocratizado. E, obviamente, precisaríamos das pessoas, já tornadas caveiras, a serem julgadas (são rés as pessoas julgadas no juízo final?). Mas não dava pra serem quaisquer pessoas, pessoas corriqueiras que tivessem tido mortes igualmente comuns. Primeiro porque talvez ficasse delicado tratar disso em cena com a irreverência que tratamos. Depois, porque é interessante quando a palhaça leva para a cena o que é incomum, descabido, absurdo – e a gente acaba se vendo ali, percebendo que o absurdo é o real e cotidiano, absurdos somos nós e o mundo no qual vivemos. Então, buscar personagens e suas mortes distantes pela época em que ocorreram e por suas singularidades foi o caminho aqui.

Enfim, fui à internet buscar mortes esdrúxulas – e na internet, a gente sabe, acha-se de tudo. Já achei listas prontas de mortes estranhas. Como a de Ésquilo, dramaturgo grego considerado o pai da tragédia, que recebeu do oráculo o aviso de que morreria com algo desabando sobre sua cabeça e, por isso, ficava tanto quanto possível ao ar livre, para evitar desabamentos. Pois reza a tradição que ele morreu atingido por uma tartaruga que uma ave de rapina teria deixado cair do céu. Ou o rei sueco que comeu, para fechar um banquete, 14 porções de sua sobremesa. Ou o outro, grego, que, nos jardins do palácio, separando uma briga entre seu cachorro de estimação e um macaco, foi atacado pelos dois. E tem mais um monte.

Levei dez relatos para a sala de ensaio para que a Gina pudesse jogar com eles (entre eles, esses aí de cima). Num primeiro momento, no entanto, parece que Patricia teve mais preocupação em fazer a Gina contar aquelas histórias do que deixá-la brincar com o esdrúxulo da coisa. Normal, me parece, temos mesmo esse hábito do racional, do relato bem ordenado etc. E uma vez que isso se superou, a cena tá uma delícia. É importante não esquecer: é preciso saber perder o controle.

Dos dez relatos, ficaram três – nenhum dos que estão mencionados aí acima –, que têm a função de preparar a cena para a chegada do Yorick. E ele já chega. Aguardemos.

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(Ainda não) é o fim!