23 dezembro 2023

A presença de plateia e a iminência do fracasso

A semana 13 por Patricia Galleto

Fim de ano se aproximando, e também nossa preparação para a pausa (retornaremos à sala na segunda quinzena de janeiro). Na nossa última semana de ensaio e pesquisa, rolou aquele “passadão” das duas cenas que temos até agora – uma criada a partir de Hamlet e outra de Antígona. O fato inesperado, entretanto, foi a presença de uma plateia! Estavam presentes Gabriela, que é uma das donas da Cena Escola de Dança, onde desenvolvemos este projeto (aliás, muito obrigada, Cena!), seu marido e seus dois filhos, que são duas crianças. Eles estavam por ali fazendo outra atividade de produção da escola e pediram pra assistir (os dois meninos, filhos da Gabi, é que na verdade demonstraram o primeiro interesse). 

A presença de público, por mais íntimo que seja, sempre dá um ar diferente aos ensaios. Quando se trata de uma palhaça, isso modifica ainda mais o “acontecimento” da cena, uma vez que palhaços, por natureza, lidam diretamente com quem assiste, seja interagindo com eles por meio de ações e falas, seja através das pontes que estabelecem com eles pelo olhar que “conta” a história e comenta.

E a presença daquelas quatro pessoas me levou a lugares muito interessantes de experimentação. Um deles se deu porque eles riram bastante, especialmente as crianças, para a minha surpresa (já que tratamos de mortes nas cenas) – e aí me pergunto como receber o riso, por exemplo, quando o foco da ação está em entediar-se até inclinar o corpo, como na cena do guarda de Antígona? Quando interagir mais ou menos com esse riso, diante de uma dramaturgia já estabelecida? Quais “brechas” nessa dramaturgia, ou nesse roteiro de ações, explorar? Deixo aqui as perguntas, porque elas me parecem mais interessantes do que as respostas, se é que existem respostas fixas.

Todas elas parecem se relacionar, de algum forma, com o tempo das coisas, sendo este tempo percebido e “manipulado” no momento da apresentação, o tal do “timing”. Alguma sensibilidade e (bastante) experiência vão afinando esse domínio de quando estender mais ou menos as cenas, conforme o público presente e o contexto da apresentação. Essa elasticidade do tempo, por sua vez, também parece contribuir para que cada apresentação seja viva, vivíssima, uma vez que existe nisso uma dose de imprevisível, mesmo que construamos uma dramaturgia para o trabalho. O risco do fracasso é latente, e colocar-se nesse risco, ainda que “controlado” em alguma instância, à beira do precipício, torna a apresentação pulsante, viva! Bom, essas são minhas impressões. Há outras, certamente.  

Nessa história de risco, vale ainda sublinhar um ponto sobre o qual eu e Dinho conversamos nesse último encontro do ano: o fracasso real. E aqui não me refiro ao fracasso que é utilizado pelo próprio palhaço ainda em cena como um excelente trampolim para o riso. Falamos do fracasso fracasso. O palhaço vai se apresentar na rua, nada funciona, é engolido pelo entorno, por exemplo. Em se tratando de palhaças, mais umas camadas extras de risco de serem engolidas, de diversas maneiras, permeadas por um machismo estrutural. Estamos cientes de que isso pode acontecer? Sabemos lidar com isso quando isso acontece? Estar pronta para o risco também é aprender a atravessar o fracasso de uma piada que não funciona, de não prender a atenção da plateia, de não ter plateia, de perder o “timing”. Assim também é estar viva. A sabedoria profunda de Guimarães Rosa sintetiza com precisão: viver é muito perigoso.

Com essa reflexão de cartão de Natal duvidoso, nos despedimos temporariamente. Prontos para o fim e o recomeço.

Até breve!



18 dezembro 2023

Da arte de transformar edredons e devolver olhares

 A semana 11 e 12 por Fernando Marques

Como já aconteceu antes, quando numa semana a gente faz apenas um encontro – normalmente fazemos dois –, juntamos duas semanas num post só. É o caso deste texto. Dito isso, vamos ao assunto.

Na cena de Antígona – o correto seria dizer: na cena a partir de Antígona –, há algumas coisas que me interessam particularmente. Gosto da cena toda, acho que conseguimos um ponto bom. Gosto do quão diferente do Hamlet – o correto seria dizer: da cena a partir de Hamlet – a cena de agora é; do fato de, no mesmo processo, lidando com o mesmo tema (embora com aspectos diferentes dele), e a partir de duas tragédias (embora de diferentes épocas), os caminhos para cada cena terem se diversificado tanto.

Antigone donnant la sépulture à Polynice (1825),
de Sébastien Norblin - mas aqui, com nosso
Edredom-Polinicies e nossa guarda Gina.
Um ponto que me interessa é o da manipulação. O nosso Polinices morto é um edredom amarrado, como já disse a Patricia. E o nosso edredom amarrado é um Polinices morto. Eu acho lindo esse pacto que se estabelece e que permite que a gente crie esse tipo de coisa: que o edredom seja o príncipe grego e vice-versa. E, uma vez que o pacto esteja estabelecido e aceito por todo mundo, o que faz com que esse tipo de coisa seja possível é, na maioria das vezes, o trabalho de quem atua. No nosso caso específico, o trabalho da palhaça. A maneira como ela manipula o objeto é que faz com que ele possa ser, aos olhos de quem assiste, o que ele se torna: um defunto inerte, um companheiro no apuro e no aperto, um parceiro de dança, um edredom mal-ajeitado, uma bola de futebol e o que mais for.

É muito bom ver o objeto se transformando de maneira quase incoerente: mas não era um corpo?, mas não era um edredom?, mas não era uma bola?, mas não era um amigo?, mas não era um objeto inerte? Ao que se poderia responder “sim, era” ou “quem te disse?”

Ainda sobre a manipulação, há um momento em que o Polinices-Edredom (ou Edredom-Polinices) é manipulado como se manipula um boneco – ou outra forma animada – em cena. É um momento breve, sem grandes rigores (mas com cuidado) e eu aposto nele como um ponto que agradará ao público. Mas isso é esperar pra ver.

Outro ponto interessante é o momento de espera da palhaça, um momento em que, aparentemente – e só aparentemente –, nada acontece. Não vou me deter sobre o que acontece, porque a Patricia já falou sobre isso
aqui
. Mas é legal pensar que, em cena, fazer nada é algo que não existe, porque estar em cena já é fazer alguma coisa. Ok, você dirá que fora de cena isso também é verdade, não há fazer nada, porque se respira, se espera, se contempla, se existe. E você terá razão. A questão é que, em cena, há uma situação de artificialidade que desloca o que quer que (não) se faça ali do fazer ordinário, cotidiano.

A colocação – já batida, mas nem por isso menos verdadeira – de que o teatro consiste em alguém que atua para alguém que assiste dá, em certa medida, conta disso, dessa artificialidade: em cena, eu não bebo água para matar a minha sede; eu bebo água para que você me veja bebendo água. Eu não espero para que algo aconteça; eu espero para que você me veja esperando. Em suma: na cena, há uma pessoa que age não para conseguir o fim daquela ação, mas para ser vista agindo. E o que acontece quando a ação dessa pessoa é olhar de volta para quem a vê?

Eu acho que é isso o que (também) acontece na cena da espera: a palhaça, em cena, parece pausar a ação que acompanhamos para nos olhar de volta. E há aí – percebe? – uma subversão: não é você que deveria me olhar, eu é que olho pra você. Há quem diga que há, no jogo teatral entre atuantes e público um jogo de espelhos, na medida em que o teatro é capaz de, mostrando-se, mostrar-nos a nós mesmos. Nesse tipo de cena, em que a ação parece – lembrando: só parece – suspensa e quem está ali nos olha de volta, esse jogo de espelhamento é muito potencializado, desde que a cena de fato aconteça, que a relação se sustente, que a corda entre cena e plateia se mantenha estendida pra que a relação que anda sobre ela não despenque. Se isso acontece, algo se realiza: um leve desconforto, algo de comicidade, alguma cumplicidade, o imprevisível. Por outro lado, pode ser que a corda afrouxe ou arrebente e o pacto se desfaça – o horror.

É uma situação de risco. A Patricia disse que isso de jogar com a aparente inação é coisa de palhaço velho – no sentido de quem tem grande domínio do que faz. Mas a cena é lugar de risco. Aliás, eu conversava com Patricia sobre isso esses dias: um monte de gente de teatro fala, com orgulho, dos riscos de estar em cena, dos riscos de a cena não funcionar etc. Mas quer morrer quando o negócio dá errado. Ou seja: quer correr riscos, ma non troppo.

Seja como for, são duas coisas aqui – a aparente inação olhando pra plateia e a manipulação que vai transformando coisas aos olhos de todo mundo – que exacerbam a teatralidade, que a levam às últimas consequências e aos seus princípios básicos. A gente se junta, inventa umas coisas, lida com o que há como se fosse o que não há, a gente se olha fazendo isso e depois segue a vida. Parece uma bobagem gigantesca, algo inútil – do ponto de vista da produtividade, do servir a algo ou a alguém, do serviço. Mas deve haver aí algo que nos mantém repetindo isso há milênios. E de mais a mais, eu adoro inutilidades.

05 dezembro 2023

O que fazer com o corpo?

A semana 10 por Patricia Galleto


No trabalho com Antígona, na cena que estamos criando, há um corpo, que seria o de Polinices. No entanto, esse corpo não tem características realistas; ele consiste basicamente numa bola de tecido envolta por um edredom amarrado, fazendo o que seria o equivalente ao pescoço. Num primeiro momento, Dinho me deixou livre para experimentar possibilidades de interação com nosso corpo-edredom. 

O que eu tinha para usar como norteador era a premissa de que a soldada Gina, diante da descoberta das honras fúnebres feitas a Polinices – aqui concretizadas na presença de velas e de uma planta seca –, estaria em pânico, sem saber o que fazer nessa situação, que, na verdade, acabaria lhe trazendo algum castigo terrível. Afinal, ela havia fracassado em sua missão de impedir que tais honras fossem concedidas.

Esse estado de pânico foi conduzindo a experimentação, que nos levou a tentativas da palhaça de esconder o corpo, esconder as velas e a planta, encontrar saídas e justificativas, explicar-se de alguma forma, até mesmo se fingir de morta junto com o morto (e depois no lugar dele). Vale lembrar que, como explica Dinho no post anterior, temos a presença de um “Jorge” na plateia, que seria qualquer pessoa do público para quem Gina olha com desconfiança e medo, como se essa pessoa fosse seu dedo-duro e fosse contar para Creonte que sua guarda não tinha evitado que as honras fúnebres fossem feitas. Em suma, “Jorge” funcionou como o ponto de apoio da cena, e era principalmente para ele que as tentativas da palhaça de se safar passaram a ser dirigidas.

Uma vez levantadas as possibilidades do que fazer com o corpo e os objetos, elencamos algumas que nos pareceram mais interessantes. Outras sugestões também foram propostas pelo Dinho depois de assistir à improvisação. Ainda sem fecharmos um roteiro de ações, nós estipulamos os caminhos que pareceram funcionar, deixando espaços abertos para o que ainda não sabemos.

Ao mesmo tempo, segurar a cena inteira nesse mesmo estado de pânico em todas as ações nos pareceu um pouco pobre para a palhaça e suas potencialidades de jogo, além de monocórdico dramaturgicamente. Assim, começamos a sublinhar mais conscientemente os momentos em que a palhaça “se distraía” entre uma coisa e outra. Um deles é quando Gina, ao segurar o corpo, brinca com ele como quem brinca com uma bola de futebol (e aqui a palhaça lida diretamente com o que de fato é o objeto, e não com o que ele representa ao longo da cena). Ela entra nesse jogo e sai dele ao ver “Jorge” e se dar conta de que precisa se livrar desse enrosco todo. A ideia é que ela possa criar essas brechas de outros estados de brincadeira e depois voltar àquele que estabelecemos como principal, a angústia de resolver o problema. As nuances da cena começam a ganhar corpo; e o corpo, mais funcionalidade como trampolim para o jogo.

(Ainda não) é o fim!