A semana 4 por Fernando Marques
Na cena do cemitério de Hamlet, o personagem-título,
vendo as caveiras que surgem (antes de Yorick) no trabalho dos coveiros, faz
alguns julgamentos – conjecturando sobre quem poderiam ter sido aqueles ossos
em vida, emite alguns juízos. Não vou reproduzir aqui pra não ficar longo, mas
você pode, se quiser, dar uma olhada, é a primeira cena do último ato.
Daí veio a ideia do juízo final – se o Hamlet faz lucubrações
ao ver as caveiras que foram vivas um dia, a Gina está envolvida num juízo final
bem estruturado, institucionalizado e até – por que não? – burocratizado. E,
obviamente, precisaríamos das pessoas, já tornadas caveiras, a serem julgadas
(são rés as pessoas julgadas no juízo final?). Mas não dava pra serem quaisquer
pessoas, pessoas corriqueiras que tivessem tido mortes igualmente comuns.
Primeiro porque talvez ficasse delicado tratar disso em cena com a irreverência
que tratamos. Depois, porque é interessante quando a palhaça leva para a cena o
que é incomum, descabido, absurdo – e a gente acaba se vendo ali, percebendo
que o absurdo é o real e cotidiano, absurdos somos nós e o mundo no qual
vivemos. Então, buscar personagens e suas mortes distantes pela época em que
ocorreram e por suas singularidades foi o caminho aqui.
Enfim, fui à internet buscar mortes esdrúxulas – e na
internet, a gente sabe, acha-se de tudo. Já achei listas prontas de mortes
estranhas. Como a de Ésquilo, dramaturgo grego considerado o pai da tragédia,
que recebeu do oráculo o aviso de que morreria com algo desabando sobre sua
cabeça e, por isso, ficava tanto quanto possível ao ar livre, para evitar
desabamentos. Pois reza a tradição que ele morreu atingido por uma tartaruga
que uma ave de rapina teria deixado cair do céu. Ou o rei sueco que comeu, para
fechar um banquete, 14 porções de sua sobremesa. Ou o outro, grego, que, nos
jardins do palácio, separando uma briga entre seu cachorro de estimação e um
macaco, foi atacado pelos dois. E tem mais um monte.
Levei dez relatos para a sala de ensaio para que a Gina
pudesse jogar com eles (entre eles, esses aí de cima). Num primeiro momento, no
entanto, parece que Patricia teve mais preocupação em fazer a Gina contar
aquelas histórias do que deixá-la brincar com o esdrúxulo da coisa. Normal, me
parece, temos mesmo esse hábito do racional, do relato bem ordenado etc. E uma
vez que isso se superou, a cena tá uma delícia. É importante não esquecer: é
preciso saber perder o controle.
Dos dez relatos, ficaram três – nenhum dos que estão
mencionados aí acima –, que têm a função de preparar a cena para a chegada do
Yorick. E ele já chega. Aguardemos.