A semana 18 por Fernando Marques
A Gina esperou e, como Godot não tenha vindo, descalçou os
sapatos, vestiu um paletó, um chapéu e se foi – não sem antes juntar seus
trocados – não sabemos para onde. Acredito que ela mesma não saiba. O texto talvez
pudesse parar por aqui, porque, afinal, isso é o que acontece na cena se
lançarmos a ela um olhar mais objetivo.
Mas, não. Eu já tinha dito aqui que é uma cena de não
acontecimentos. Menti. É uma cena em que o que acontece é comezinho, banal, sem
importância. Como já disse a Patricia no post anterior, as coisas acontecem na
cena enquanto o que seria um acontecimento maior – esse, importante de fato –
não se realiza nunca. Então, enquanto isso, o que se tem é uma moeda que se
perde, um sapato que aperta, um paletó que não para no corpo, um chapéu que não
se adéqua. E há esse nosso mal hábito de considerar que a vida é feita de
grandes acontecimentos e não do cafezinho diário; como se não houvesse muito
mais o lavar a roupa íntima que grandes explosões de paixão.
De alguma forma, me lembro aqui de umas personagens de Pequenos
burgueses, do Górki, Tatiana e Pólia. Logo no início do primeiro ato, elas
falam sobre um livro que Tatiana lê e, a determinada altura, Pólia diz: “Eles
escrevem sobre o que interessa. E nossa vida, que interesse tem?”. (Depois, na
década de 70, as duas mocinhas russas diante da literatura foram transformadas,
no Trate-me leão, do Asdrúbal Trouxe o Trombone, em duas jovens
cariocas, muito loucas, que assistiam à novela; depois, na década de 2000, o
Grupo Z montou uma cena chamada “Trate-me Górki”, em seu espetáculo Quatro
intérpretes para cinco peças. Mas já é digressão demais).
Então, retomando, me lembrei da Pólia perguntando à Tatiana,
diante dos acontecimentos da vida romanesca, que interesse tem a vida da gente,
que, no fim das contas, é isso aí, esse arroz-com-feijão de todo dia – às vezes
com temperos mais ou menos palatáveis, mas isso aí. Talvez essa ideia da vida
feita de acontecimentos memoráveis se relacione com essa nossa ideia torta da
história feita de grandes nomes e datas e não pela luta de classes nossa de
cada dia.
Portanto, sim: Gina descalçou os sapatos, vestiu paletó e
chapéu e se foi, não sabemos para onde. Mas, entre uma coisa e outra, perdeu e
achou a mão e moedas, aprendeu a lidar com cadarços, reencontrou simbolicamente
uma companheira, o Michael Jackson e o Gene Kelly, esperou, desesperou-se,
cansou de esperar, se divertiu, dançou, foi embora com Carlitos e, embora
talvez nada disso tenha acontecido de verdade, é aí que alguma verdade está.
Ou, como já disse a Patricia no post anterior: “A cena, a
vida, é o durante”. Ou seja: é um texto inteiro, todo digressivo, só pra dizer
o que a companheira de trabalho, com concisão e objetividade, já havia resumido
em uma frase. E é isso. No mais, terminado o Godot, vem agora A falecida, do Nelson Rodrigues – que é um autor que
eu já amei e por quem hoje nutro certa antipatia. Mas isso é assunto pra
depois.
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