11 março 2024

Um texto digressivo

 A semana 18 por Fernando Marques

A Gina esperou e, como Godot não tenha vindo, descalçou os sapatos, vestiu um paletó, um chapéu e se foi – não sem antes juntar seus trocados – não sabemos para onde. Acredito que ela mesma não saiba. O texto talvez pudesse parar por aqui, porque, afinal, isso é o que acontece na cena se lançarmos a ela um olhar mais objetivo.

Mas, não. Eu já tinha dito aqui que é uma cena de não acontecimentos. Menti. É uma cena em que o que acontece é comezinho, banal, sem importância. Como já disse a Patricia no post anterior, as coisas acontecem na cena enquanto o que seria um acontecimento maior – esse, importante de fato – não se realiza nunca. Então, enquanto isso, o que se tem é uma moeda que se perde, um sapato que aperta, um paletó que não para no corpo, um chapéu que não se adéqua. E há esse nosso mal hábito de considerar que a vida é feita de grandes acontecimentos e não do cafezinho diário; como se não houvesse muito mais o lavar a roupa íntima que grandes explosões de paixão.

De alguma forma, me lembro aqui de umas personagens de Pequenos burgueses, do Górki, Tatiana e Pólia. Logo no início do primeiro ato, elas falam sobre um livro que Tatiana lê e, a determinada altura, Pólia diz: “Eles escrevem sobre o que interessa. E nossa vida, que interesse tem?”. (Depois, na década de 70, as duas mocinhas russas diante da literatura foram transformadas, no Trate-me leão, do Asdrúbal Trouxe o Trombone, em duas jovens cariocas, muito loucas, que assistiam à novela; depois, na década de 2000, o Grupo Z montou uma cena chamada “Trate-me Górki”, em seu espetáculo Quatro intérpretes para cinco peças. Mas já é digressão demais).

No fundo, Gorki com o elenco do Teatro de Arte de Moscou na época da montagem de Pequenos Burgueses. Em primeiro plano, o elenco da cena "Trate-me Górki", do Z; as meninas muito doidas do Asdrúbal e, obviamente, a Gina.

Então, retomando, me lembrei da Pólia perguntando à Tatiana, diante dos acontecimentos da vida romanesca, que interesse tem a vida da gente, que, no fim das contas, é isso aí, esse arroz-com-feijão de todo dia – às vezes com temperos mais ou menos palatáveis, mas isso aí. Talvez essa ideia da vida feita de acontecimentos memoráveis se relacione com essa nossa ideia torta da história feita de grandes nomes e datas e não pela luta de classes nossa de cada dia.

Portanto, sim: Gina descalçou os sapatos, vestiu paletó e chapéu e se foi, não sabemos para onde. Mas, entre uma coisa e outra, perdeu e achou a mão e moedas, aprendeu a lidar com cadarços, reencontrou simbolicamente uma companheira, o Michael Jackson e o Gene Kelly, esperou, desesperou-se, cansou de esperar, se divertiu, dançou, foi embora com Carlitos e, embora talvez nada disso tenha acontecido de verdade, é aí que alguma verdade está.

Ou, como já disse a Patricia no post anterior: “A cena, a vida, é o durante”. Ou seja: é um texto inteiro, todo digressivo, só pra dizer o que a companheira de trabalho, com concisão e objetividade, já havia resumido em uma frase. E é isso. No mais, terminado o Godot, vem agora A falecida, do Nelson Rodrigues – que é um autor que eu já amei e por quem hoje nutro certa antipatia. Mas isso é assunto pra depois.

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