13 novembro 2023

Gentalha

 As semanas 6 e 7 por Fernando Marques.


E a gente já vai explicando que este post abrange duas semanas porque houve feriado aí no meio e, por isso, achamos melhor juntar tudo e não retalhar. Dito isso, ao post propriamente dito:


Hamlet já se foi e quem entra em cena, agora, é Antígona. Há aí, no que eu acabei de dizer, uma mentira. Uma dupla mentira. Primeiro, porque quem entra em cena é a Gina – as dramaturgias nos servem como pontos de partida, mas é só; os textos não vão efetivamente pra cena. Depois, porque o trecho que escolhemos da peça de Sófocles nem é com a protagonista, que dá título ao texto. Escolhemos o trecho em que um guarda deve contar a Creonte que ele e os colegas falharam na tarefa a eles designada.

Contextualizando, é o seguinte: os irmãos de Antígona morrem na guerra pelo trono de Tebas – que é, então, ocupado por Creonte. Um dos irmãos, Polinices, é considerado traidor e Creonte proíbe que seu corpo seja enterrado e receba as honras fúnebres. Antígona, no entanto, não se conforma com isso e está empenhada em sepultar o irmão. Após proclamar o édito que interditava o cadáver, o rei designa um grupo de guardas para vigiá-lo. Acontece que alguém conseguiu burlar a vigilância e os guardas precisam contar a Creonte o que houve. Temendo as consequências, ninguém quer ir dar a notícia ao rei e, assim, há um sorteio para definir quem, entre eles, cumprirá a missão.

A cena em que o guarda se coloca diante do rei para narrar o acontecido é apontada como um momento cômico na tragédia. Sobre isso, inclusive, diz Orlando Luiz de Araújo (em artigo que pode ser lido aqui) que o risível estaria, provavelmente, na atuação de quem faz o guarda. Sem dúvida, a atuação terá aí um papel importantíssimo, mas já é possível perceber o cômico na dramaturgia – vale a pena dar uma olhadinha na tradução do Millôr.

E aqui há algo que pode ter chamado a atenção de quem vem acompanhando o processo desde o início (supondo que haja alguém fazendo isso) – em Hamlet, o trecho escolhido foi o dos coveiros, considerado o alívio cômico antes do desfecho trágico; aqui, é o do guarda, também cômico e antecedendo a tensão do enfrentamento direto entre Antígona e Creonte, as duas forças antagônicas da peça.

E tem algo interessante aí: as tragédias, com toda a sua nobreza e seriedade, muito dignas e superiores (como vêm querendo alguns ao longo dos séculos) giram em torno de monarcas, divindades etc. Quando aparecem, então, as pessoas comuns – plebeias, humanas, trabalhadoras, marginais –, estão ligadas ao cômico, têm um tom mais rasteiro, um registro diferente da tal dignidade trágica. E isso tanto ali pelo século V a.C., com Sófocles, quanto pelos 1500, 1600, com Shakespeare. Já tinham dito Carlos e Frederico que a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes – pois é, é assim em todos os âmbitos.

O coveiro do Hamlet é visto pelo príncipe como meio desrespeitoso, tem um palavreado chulo, é despachado. O nosso guarda, dominado pelo medo diante do rei, é meio atrapalhado, se embola com as palavras, mas não perde certa perspicácia. Pois é esse pessoal aí, subalterno, que me interessa mais e tenho cá pra mim que é com ele que a Gina se irmana – talvez a palhaça possa circular por qualquer espaço, tanto quanto os bobos podiam frequentar as cortes, mas as pessoas às quais se junta de verdade e os espaços nos quais se espalha realmente a gente sabe quais são. Eu vou junto com a Gina e sua trupe de subalternos subversivos.

P.S.: saudade desses guardas da Antiguidade grega, que a gente não tem visto com muita frequência na contemporaneidade e que, estando subordinados às ordens de seus superiores, sabiam bem que deviam temê-los por não serem iguais a eles; por saberem bem o lugar a que pertenciam quando a coisa apertava – fosse no soldo, no saldo, na sola, na sala, na cela, na sela, na cena, na sina, pelo sim, pelo não, pelo fim e por aí vamos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

(Ainda não) é o fim!