As semanas 6 e 7 por Fernando Marques.
E a gente já vai explicando que este post abrange duas semanas porque houve feriado aí no meio e, por isso, achamos melhor juntar tudo e não retalhar. Dito isso, ao post propriamente dito:
Hamlet já se foi e quem entra em cena, agora, é Antígona. Há
aí, no que eu acabei de dizer, uma mentira. Uma dupla mentira. Primeiro, porque
quem entra em cena é a Gina – as dramaturgias nos servem como pontos de
partida, mas é só; os textos não vão efetivamente pra cena. Depois, porque o
trecho que escolhemos da peça de Sófocles nem é com a protagonista, que dá
título ao texto. Escolhemos o trecho em que um guarda deve contar a Creonte que
ele e os colegas falharam na tarefa a eles designada.
Contextualizando, é o seguinte: os irmãos de Antígona morrem
na guerra pelo trono de Tebas – que é, então, ocupado por Creonte. Um dos
irmãos, Polinices, é considerado traidor e Creonte proíbe que seu corpo seja
enterrado e receba as honras fúnebres. Antígona, no entanto, não se conforma
com isso e está empenhada em sepultar o irmão. Após proclamar o édito que
interditava o cadáver, o rei designa um grupo de guardas para vigiá-lo.
Acontece que alguém conseguiu burlar a vigilância e os guardas precisam contar
a Creonte o que houve. Temendo as consequências, ninguém quer ir dar a notícia
ao rei e, assim, há um sorteio para definir quem, entre eles, cumprirá a
missão.
A cena em que o guarda se coloca diante do rei para narrar o
acontecido é apontada como um momento cômico na tragédia. Sobre isso,
inclusive, diz Orlando Luiz de Araújo (em artigo que pode ser lido aqui) que o
risível estaria, provavelmente, na atuação de quem faz o guarda. Sem dúvida, a
atuação terá aí um papel importantíssimo, mas já é possível perceber o cômico
na dramaturgia – vale a pena dar uma olhadinha na tradução do Millôr.
E aqui há algo que pode ter chamado a atenção de quem vem
acompanhando o processo desde o início (supondo que haja alguém fazendo isso) –
em Hamlet, o trecho escolhido foi o dos coveiros, considerado o alívio
cômico antes do desfecho trágico; aqui, é o do guarda, também cômico e antecedendo
a tensão do enfrentamento direto entre Antígona e Creonte, as duas forças
antagônicas da peça.
E tem algo interessante aí: as tragédias, com toda a sua
nobreza e seriedade, muito dignas e superiores (como vêm querendo alguns ao
longo dos séculos) giram em torno de monarcas, divindades etc. Quando aparecem,
então, as pessoas comuns – plebeias, humanas, trabalhadoras, marginais –, estão
ligadas ao cômico, têm um tom mais rasteiro, um registro diferente da tal
dignidade trágica. E isso tanto ali pelo século V a.C., com Sófocles, quanto
pelos 1500, 1600, com Shakespeare. Já tinham dito Carlos e Frederico que a
história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de
classes – pois é, é assim em todos os âmbitos.
O coveiro do Hamlet é visto pelo príncipe como meio
desrespeitoso, tem um palavreado chulo, é despachado. O nosso guarda, dominado
pelo medo diante do rei, é meio atrapalhado, se embola com as palavras, mas não
perde certa perspicácia. Pois é esse pessoal aí, subalterno, que me interessa
mais e tenho cá pra mim que é com ele que a Gina se irmana – talvez a palhaça
possa circular por qualquer espaço, tanto quanto os bobos podiam frequentar as
cortes, mas as pessoas às quais se junta de verdade e os espaços nos quais se
espalha realmente a gente sabe quais são. Eu vou junto com a Gina e sua trupe
de subalternos subversivos.
P.S.: saudade desses guardas da Antiguidade grega, que a gente não tem visto com muita frequência na contemporaneidade e que, estando subordinados às ordens de seus superiores, sabiam bem que deviam temê-los por não serem iguais a eles; por saberem bem o lugar a que pertenciam quando a coisa apertava – fosse no soldo, no saldo, na sola, na sala, na cela, na sela, na cena, na sina, pelo sim, pelo não, pelo fim e por aí vamos.
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