29 novembro 2023

Um novo morto, a palhaça e a moral

 A semana 9 por Fernando Marques


Na cena criada a partir de Antígona, passado o momento da espera, vem o momento da relação com o corpo que, tendo recebido homenagens fúnebres, desafia o rei e coloca nossa palhaça-soldada em risco, desesperando-a (se você não sabe do que a gente tá falando, dá uma olhada nos dois posts anteriores a este).

Decidimos que essa seria uma cena em que a relação com a plateia – sempre importantíssima na palhaçaria – teria um peso especial e que haverá (assim esperamos), uma pessoa em particular, escolhida aleatoriamente a cada apresentação, com quem essa relação será mais marcada.

Não tendo essa pessoa nos ensaios, para que a atriz/palhaça se oriente em cena, começamos a marcar um lugar com uma cadeira vazia na nossa sala de trabalho (obrigado, Cena Escola de Dança). E eu, sei lá o porquê, comecei a me referir àquele espectador imaginário como Jorge. E depois me lembrei do tio Jorge, alguém com quem eu convivi há muitos anos (isso foi no século passado), de uma enorme cultura teatral e que gostava muito de Antígona, e brinquei comigo mesmo, dizendo – mentalmente – que era o tio Jorge quem vinha vindo assistir aos nossos ensaios, ocupando a cadeira aparentemente vazia. Porque o tio Jorge já faleceu e sei que a Patricia tem medo de assombrações. Obviamente, contei a ela o que me passou pela cabeça e, desde então, não me refiro mais ao nosso espectador imaginário simplesmente como Jorge, mas como tio Jorge. Me divirto com a situação.

Patricia questiona, vez ou outra, se está certo nos divertirmos com a questão da morte, fazendo piadas com o tema, criando ironias, inventando situações inusitadas etc. Digo a ela que é tarde para essa pergunta, uma vez que o projeto, aprovado e em andamento, fala justamente desse assunto (o que é só uma frase de efeito, é claro que sempre podemos pensar – e pensamos – sobre como abordar o negócio). Mas acho mesmo que a gente precisa tirar um pouco da sisudez que tende a nos cobrir quando a morte é o assunto. Em função daquilo que todo mundo já sabe: é inevitável, é para lá que caminhamos, nos acometerá a todos etc. etc. etc. E a vida será bem mais leve se começarmos a lidar melhor com a finitude.


Mas o que é de fato interessante aqui é como a Patricia tem suas questões com o assunto e a palhaça, não. Calma: não estou aqui apelando para metafísicas, colocando a palhaça como entidade de existência independente e autônoma que toma a atriz e sei lá mais o quê. Não. Rejeito tudo o que romantiza nosso trabalho – nós, artistas – ou que dá a ele um caráter diferente do que ele tem, do que ele é: trabalho. Entre outras coisas, porque essa noção besta contribui horrores para que o senso comum ache que a gente não tem que receber dignamente pelo que fazemos, para que o poder público lide com a gente como lida etc. Não se trata disso.

É que na palhaçaria é preciso mesmo exercitar umas coisas como levantar certas barreiras morais/moralizantes, brincar com o que é venerável e por aí vai. De alguma forma, isso tem a ver com aquela história da permissão dada aos bobos da corte para dizer certas coisas que colocariam outras pessoas em maus lençóis (falamos um pouco sobre isso aqui). Seja como for, tem acontecido de a palhaça trazer isso pra cena e a Patricia, muitas vezes, só se dar conta das coisas em que mexeu quando tira o nariz. É um bom sinal para o trabalho que, aliás, eu acho que vai indo bem. O tio Jorge, pelo menos, não tem reclamado.

18 novembro 2023

O acontecimento da espera – ou tudo, ou nada

A semana 8 por Patricia Galleto


Esperar requer alguma maturidade. Uma criança geralmente tem dificuldade de esperar, de entender e aceitar que nem tudo é pra já, de reconhecer o tempo das coisas. Além disso, esperar requer desvencilhar-se da ansiedade do fazer. Nesta etapa do nosso trabalho, em que partimos de Antígona para a investigação e criação, há um tempo de espera para a palhaça. Na verdade, é uma espera ativa – como em geral são as esperas cênicas –, é mais espera para quem vê do que para quem está em cena. Um “nada” preenchido por microações internas. Disso há um grande acontecimento resultante, que pode ser algum incômodo, talvez, uma suspensão, uma pausa, um tédio, aquilo que surge inesperadamente em quem assiste à espera, e espera junto.

Para não dizer que nada externamente acontece, há a ação física de ir inclinando o corpo, que está sentado em um banquinho, começando pela cabeça. Os olhos passeiam por cada pessoa (imaginária, pois só o Dinho e eventualmente a Gabi observam a cena), com pequeninas variações, quase imperceptíveis. Até que o corpo se desequilibra e quase cai do banco, fazendo a palhaça levantar-se rapidamente diante do imprevisto. Esse corpo é o da palhaça/soldada que chega atrasada ao seu posto de guardar o corpo de Polinices para que ninguém o enterre e lhe preste homenagens, como Dinho explica no post anterior. Ao guardá-lo, não há nada a fazer. Surge a espera.

Ter calma e presença que consigam dar conta de segurar a cena são os maiores desafios para mim neste momento. Eu, que frequentemente tenho acelerado as cenas por ansiedade, estou diante da missão de fazer o exato oposto. Às vezes o que encurta precipitadamente o tempo dessa passagem é a angústia de estar me estendendo demais, levando o público à perda do interesse. Por outro lado, parece ser justamente ali onde a palhaça pode ganhar o público (é uma espécie de ou tudo, ou nada). Trata-se de um encontro muito mais “desarmado” com as pessoas, através do olhar e da quase nenhuma ação externa. É segurar pela ação interna. E, nesse caso, ação interna é estar viva a palhaça, com livre passagem do interno ao externo através dos olhos. Agora me lembrei de uma das professoras que tive na palhaçaria, que dizia sempre: “brilho no olhar!”.

Essa cena foi criada em improvisação na sala de ensaio, e reorientada pelo olhar do Dinho, e segue em construção por nós dois. De um olhar para o outro, as pontes se estabelecem. Enquanto cuidamos da cena, exercito os olhos da Gina. Outra memória preciosa que guardo de aulas de palhaçaria é o clássico exercício de apenas entrar com o nariz e ir olhando um por um que está na plateia, sem fazer nada, mas permanecendo vivo e individualizando o olhar para cada pessoa. E cada olhar, como cada ponte estabelecida, é minimamente diferente. Quem faz esse exercício pela primeira vez tende a querer se mexer, mover braços, deslocar o eixo, fazer alguma coisa, criar intenções nas miradas, dizer algo! Quando tudo isso cessa, o palhaço surge e entra em cena efetivamente.

Nesta cena criada no trabalho com Antígona, sinto como dar um passo atrás (mais uma vez), reencontrando o superdifícil ‘apenas ser’, sem fazer nada, o que, na verdade, é dar um passo adiante, preenchendo a criação com aquilo que é fundamental no fim das contas, em se tratando de palhaços (e, por que não, da vida?): existir, genuinamente, em relação com as pessoas, existir na relação, primeiramente através do olhar. A palhaça olha e vê.


13 novembro 2023

Gentalha

 As semanas 6 e 7 por Fernando Marques.


E a gente já vai explicando que este post abrange duas semanas porque houve feriado aí no meio e, por isso, achamos melhor juntar tudo e não retalhar. Dito isso, ao post propriamente dito:


Hamlet já se foi e quem entra em cena, agora, é Antígona. Há aí, no que eu acabei de dizer, uma mentira. Uma dupla mentira. Primeiro, porque quem entra em cena é a Gina – as dramaturgias nos servem como pontos de partida, mas é só; os textos não vão efetivamente pra cena. Depois, porque o trecho que escolhemos da peça de Sófocles nem é com a protagonista, que dá título ao texto. Escolhemos o trecho em que um guarda deve contar a Creonte que ele e os colegas falharam na tarefa a eles designada.

Contextualizando, é o seguinte: os irmãos de Antígona morrem na guerra pelo trono de Tebas – que é, então, ocupado por Creonte. Um dos irmãos, Polinices, é considerado traidor e Creonte proíbe que seu corpo seja enterrado e receba as honras fúnebres. Antígona, no entanto, não se conforma com isso e está empenhada em sepultar o irmão. Após proclamar o édito que interditava o cadáver, o rei designa um grupo de guardas para vigiá-lo. Acontece que alguém conseguiu burlar a vigilância e os guardas precisam contar a Creonte o que houve. Temendo as consequências, ninguém quer ir dar a notícia ao rei e, assim, há um sorteio para definir quem, entre eles, cumprirá a missão.

A cena em que o guarda se coloca diante do rei para narrar o acontecido é apontada como um momento cômico na tragédia. Sobre isso, inclusive, diz Orlando Luiz de Araújo (em artigo que pode ser lido aqui) que o risível estaria, provavelmente, na atuação de quem faz o guarda. Sem dúvida, a atuação terá aí um papel importantíssimo, mas já é possível perceber o cômico na dramaturgia – vale a pena dar uma olhadinha na tradução do Millôr.

E aqui há algo que pode ter chamado a atenção de quem vem acompanhando o processo desde o início (supondo que haja alguém fazendo isso) – em Hamlet, o trecho escolhido foi o dos coveiros, considerado o alívio cômico antes do desfecho trágico; aqui, é o do guarda, também cômico e antecedendo a tensão do enfrentamento direto entre Antígona e Creonte, as duas forças antagônicas da peça.

E tem algo interessante aí: as tragédias, com toda a sua nobreza e seriedade, muito dignas e superiores (como vêm querendo alguns ao longo dos séculos) giram em torno de monarcas, divindades etc. Quando aparecem, então, as pessoas comuns – plebeias, humanas, trabalhadoras, marginais –, estão ligadas ao cômico, têm um tom mais rasteiro, um registro diferente da tal dignidade trágica. E isso tanto ali pelo século V a.C., com Sófocles, quanto pelos 1500, 1600, com Shakespeare. Já tinham dito Carlos e Frederico que a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes – pois é, é assim em todos os âmbitos.

O coveiro do Hamlet é visto pelo príncipe como meio desrespeitoso, tem um palavreado chulo, é despachado. O nosso guarda, dominado pelo medo diante do rei, é meio atrapalhado, se embola com as palavras, mas não perde certa perspicácia. Pois é esse pessoal aí, subalterno, que me interessa mais e tenho cá pra mim que é com ele que a Gina se irmana – talvez a palhaça possa circular por qualquer espaço, tanto quanto os bobos podiam frequentar as cortes, mas as pessoas às quais se junta de verdade e os espaços nos quais se espalha realmente a gente sabe quais são. Eu vou junto com a Gina e sua trupe de subalternos subversivos.

P.S.: saudade desses guardas da Antiguidade grega, que a gente não tem visto com muita frequência na contemporaneidade e que, estando subordinados às ordens de seus superiores, sabiam bem que deviam temê-los por não serem iguais a eles; por saberem bem o lugar a que pertenciam quando a coisa apertava – fosse no soldo, no saldo, na sola, na sala, na cela, na sela, na cena, na sina, pelo sim, pelo não, pelo fim e por aí vamos.

08 novembro 2023

Meu deus do céu, que inferno! – o desfecho do trabalho com Hamlet

A semana 5 por Patricia Galleto

Ser ou não ser? A questão é o que fazer com a caveira do Yorick, a última a ser julgada por Gina neste “departamento” do Juízo Final! Na peça de Shakespeare, o que sabemos é que Yorick é um falecido bobo da corte. Dentre os crânios desenterrados pelos coveiros sobressai o deste palhaço, que é lembrado com afeto por Hamlet (e com certa repulsa pelos próprios coveiros, que se referem a ele como “maluco filho da puta” e “palhaço louco”).

Mesa e objetos utilizados na
experimentação do Juízo Final

Se, na peça, Yorick aparece como uma figura conhecida de Hamlet, em nosso experimento, a palhaça o reconhece como colega de profissão, um amigo antigo – no nosso caso, a ideia é que sua caveira possua um nariz de palhaço, diferenciando-se das demais. Nesse encontro, experimentamos um diálogo improvisado, para ver o que dali poderia surgir. E então registramos falas do tipo: “Quase não te reconheci, você está mudado!”; “Você não estava trabalhando lá na Dinamarca como bobo do rei?”; “Ah, você perdeu graça...”; “Eu estou bem, estou viva, né?!”, entre outras.

A partir desse levantamento, elaboramos um roteiro que estrutura mais ou menos essa conversa. No entanto, não sabíamos ainda o que fazer no final dela – que seria o final desta cena e do nosso trabalho com o Hamlet. Diante do incerto, Dinho orienta: “Resolva, com a palhaça, o que fazer com o Yorick”. Mais uma vez, o absoluto desconhecido na improvisação. O fato é que já nem me lembro como foi que chegamos a um desfecho, já que meu papo com Dinho durante o processo muitas vezes faz a coisa ser uma só, sem uma nítida definição de quem propôs o quê.

Assim, temos que a palhaça se encontra na dúvida sobre para onde mandar Yorick – se para o Céu ou para o Inferno. O conflito estabelecido pela palhaça, aqui, de alguma forma nos remete ao conflito metafísico presente em Hamlet. Seguindo essa mesma linha, há uma espécie de conflito da palhaça diante de si mesma, ao se colocar em relação à caveira de Yorick, também palhaço. Por outro lado, esse tipo de conflito não perdura ou não transparece tanto aos olhos da palhaça, que, ao contrário disso, lida com as coisas do mundo de maneira prática, com aquilo que se apresenta para ela naquele preciso momento através de uma ação concreta, física, e não psicológica. Há uma urgência (que não é pressa, Patricia!) em provocar um novo acontecimento.

A partir da dúvida da palhaça, surge a frase que marca esse momento de não saber o que fazer: “Meu deus do céu, que inferno!”. A saída é justamente dar um chute no conflito possivelmente metafísico e convidar a caveira do Yorick para um café; e café, para Gina, pode ser sempre outra coisa mais alcoólica. Decidimos finalizar nossa experimentação com Hamlet assim! Mesmo com o desfecho elaborado, ainda com muita coisa para ajustar, se formos pensar na elaboração de um número. Mas, como disse Dinho, temos aí um arcabouço, um chão por onde a palhaça anda. Não é demais ressaltar que ela ainda precisa andar com mais protagonismo, com mais estado e presença, coisa que permanece sendo uma dificuldade para mim neste trabalho.



(Ainda não) é o fim!