30 janeiro 2024

Chegou o Godot

 A semana 14 por Fernando Marques

Depois de curtas e excessivamente quentes férias, estamos de volta e com novo texto a nos servir de provocação: Esperando Godot, do Beckett. Quando íamos começar o trabalho com o texto, comentei com a Patricia: acho que me sabotei ou dei um tiro no pé. Isso porque a espera, que seria um tema óbvio a se trabalhar a partir do Godot, eu já tinha proposto e a gente já desenvolveu na cena da Antígona (a Patricia falou sobre isso aqui).

No fim das contas, nem sabotagem, nem tiro no pé – em nenhuma das duas cenas anteriores, a partir de Hamlet e de Antígona, abordamos aspectos mais evidentes dos textos-base; por que deveria ser assim agora? Pois um aspecto que chamou atenção está nas rubricas indicando ações dos personagens, Estragon e Vladimir, com peças do vestuário – o primeiro, tentando tirar sua bota, o segundo, na relação com seu chapéu.

Reproduzo aqui alguns trechos que indicam a ação de Estragon: “Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas mãos, gemendo. Para, exausto; descansa, ofegante; recomeça. Mais uma vez”; “Estragon luta com a bota”; “Com esforço extremo, Estragon consegue tirar a bota. Examina seu interior com o olhar, vasculha-a com a mão, sacode-a, procura ver se algo caiu ao redor, no chão, não encontra nada, vasculha o interior com a mão mais uma vez, olhar ausente”.

E agora, Vladimir com o chapéu: “Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, torna a vesti-lo”; “Tira o chapéu mais uma vez, examina o interior com o olhar”; “Bate no chapéu, como quem quer fazer que algo caia, examina o interior com o olhar, torna a vesti-lo”; “Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, bate nele, sopra no interior, torna a vesti-lo”.

Todas as ações acontecem enquanto os dois conversam e acontecem em pouco tempo. E há aí uma repetição de ações aparentemente sem sentido que nos pareceu bem afeita ao modus operandi da palhaça. Além disso, Fábio de Sousa Andrade, no prefácio do texto em publicação pela Cosac & Naify, cita o quanto a peça deve ao modelo chapliniano do vagabundo desvalido; Roger Blin, responsável pela primeira montagem da peça, diz que acredita que Beckett, ao escrever o Godot, tenha sido influenciado pelos comediantes americanos da época e que ele mesmo teve uma visão dos personagens: Charlie Chaplin como Vladimir, Buster Keaton como Estragon e Charles Laughton como Pozzo.

Então, num primeiro momento, foi com isso que entramos em sala: as rubricas, suas repetições que transitam entre o cômico e o absurdo, a relação com peças do vestuário, a imagem do vagabundo desvalido. Começamos concretamente da necessidade de tirar o sapato, como começa Estragon. Patricia inseriu uma moeda na improvisação e a coisa começou a andar. Vejamos para onde.

(Ainda não) é o fim!